Mas eis que chega o mimo. Ah... o mimo. Os diminutivos sussurrados, as blandícias, os gestos escondidos, as palavras inventadas porque nenhuma chega para definir na perfeição os trilhos que a alma segue e as encruzilhadas onde se esgota. Os afagos pelos cotovelos, o amor que respinga e que ambos apanham em concha com as mãos, os dedos dos pés em flor. Ela, que o agarra por trás tentando abarcar-lhe a cintura quando se deitam e moendo-lhe as costas de beijos, traçando-lhe mapas húmidos na pele e às cegas, enquanto o sono hesita. O ambos se permitirem o ressono do outro, ele que não a manda calar quando a sinusite dela assobia na noite, e ela, que ligeiramente o abana no contratempo de um rouco profundo, apneico e aflitivo. Trocam-se juras enquanto se dorme, promessas esquecidas no dia seguinte, mas que nem por isso perdem a validade do primeiro dia, do primeiro olhar, das primeiras mãos: suadas e nervosas a desbravarem caminho no corredor de um quarto de hotel, numa cidade estranha. Ele, que às tantas ataca o frigorífico e que a ataca na cozinha, e que não sabe o que comer primeiro, e ela, que o arrasta quando as luzes cuscas da rua se acendem, a maionese aberta na bancada, a coca-cola a perder o gás, e pelo caminho até ao quarto um trilho de roupa interior onde a gata se enrosca e adormece, indiferente ao bulício carnal e ao perigo iminente do desmembramento do estrado esquerdo da cama king size, comprovando-se assim que o material sueco nem sempre é de primeira qualidade.
E de vez em quando o reverso, o drama, a destruição, a ventania. Os braços abertos que a deixam fugir, que a empurram para os confins da estrada, e ela a esparramar-se no asfalto, à mercê de qualquer coisa, de quem quer que seja, azaramboada, morta se o arrependimento matasse. Ele a rainha do drama, a fúria do gigante, a insensatez, o desvario, o fim tantas vezes anunciado, o abrigo precário, o sopro do coração. Ele, os cacos que ela apanha do chão e que varre com parcimónia doméstica, o chão que desinfecta com lexívia; os sacos de plástico com os despojos de guerra dos quais ele se desfaz a horas mortas, para que os vizinhos não saibam que o mundo acabou, ponto final, parágrafo. Entre ambos, um silêncio que mortifica, deambulante, uma desconfiança hostil e a certeza de que tudo é nunca, que o que foi já não volta, maldito o dia em que te conheci, esquece-me, odeio-te, morre. A posição fetal e quieta na cama que não mais se desengonça nem descabela, a escuridão onde o mar não entra, o queixume silencioso, a dor rouca, o fado vadio, as malas aviadas à porta, a saída intempestiva que ela ensaia e ameaça, que coreografa vezes sem conta, só para ver se ele a impede. E ele, que umas vezes lhe barra o caminho e que outras, nem por isso.
E depois tem a maneira como ele a abraça, nunca vira nada assim. Vira de ver, mesmo. De como os ombros dele se encurvam, contemplando-a toda, primeiro com uma aparência devoradora, como uma piton escancarando as mandíbulas e preparando-se para a deglutir inteira, anestesiando-a primeiro, hipnotizando-a, açambarcando-lhe a pele, crescendo perante ela, tapando-lhe o sol. Há uma falta de ar que se insinua nela, como se pressentisse o fim e nada mais valesse a pena, respirar para quê?, mas depressa cede ao calor daqueles braços que crescem e descem sobre ela, redondos, um cordame que se enrola e aperta, o tronco dele a acompanhar o movimento, a ajeitar-se de lado, descaindo um pouco por forma a fechar sobre ela o círculo, comprimindo-a com uma suavidade determinada de ressuscitar corações. Ele é alto, e por mais que se ajeite e se entorte e a circunde, ela esparrama-lhe sempre a cara no peito, expirando tanto receio como alívio, escondendo o nariz entupido de emoção naquele torso largo, que carrega lá dentro um compasso cardíaco acelerado, o compasso de quem quer guardar o outro para sempre dentro de si, carregá-lo em modo marsupial, levá-lo ao médico, às compras e para a cama, porque senão morre. Depois ele embala-a, como se faz a um bebé, numa cadência fina que transmite a certeza de ainda ali estar no dia seguinte, de pé embrulhado nela, porque não, os cavalos nem sempre se abatem, e ela não sabe se aquilo é amor ou se ele um corta-vento, só sabe que adormece e tudo o que ele podia fazer dela, se quisesse.