Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Controversa Maresia

um blogue de Sofia Vieira

Controversa Maresia

um blogue de Sofia Vieira

mimos

por Vieira do Mar, em 02.07.10

                                                     © sofia vieira

 

Mas eis que chega o mimo. Ah... o mimo. Os diminutivos sussurrados, as blandícias, os gestos escondidos, as palavras inventadas porque nenhuma chega para definir na perfeição os trilhos que a alma segue e as encruzilhadas onde se esgota. Os afagos pelos cotovelos, o amor que respinga e que ambos apanham em concha com as mãos, os dedos dos pés em flor. Ela, que o agarra por trás tentando abarcar-lhe a cintura quando se deitam e moendo-lhe as costas de beijos, traçando-lhe mapas húmidos na pele e às cegas, enquanto o sono hesita. O ambos se permitirem o ressono do outro, ele que não a manda calar quando a sinusite dela assobia na noite, e ela, que ligeiramente o abana no contratempo de um rouco profundo, apneico e aflitivo. Trocam-se juras enquanto se dorme, promessas esquecidas no dia seguinte, mas que nem por isso perdem a validade do primeiro dia, do primeiro olhar, das primeiras mãos: suadas e nervosas a desbravarem caminho no corredor de um quarto de hotel, numa cidade estranha. Ele, que às tantas  ataca o frigorífico e que a ataca na cozinha, e que não sabe o que comer primeiro, e ela, que o arrasta quando as luzes cuscas da rua se acendem, a maionese aberta na bancada, a coca-cola a perder o gás, e pelo caminho até ao quarto um trilho de roupa interior onde a gata se enrosca e adormece, indiferente ao bulício carnal e ao perigo iminente do desmembramento do estrado esquerdo da cama king size, comprovando-se assim que o material sueco nem sempre é de primeira qualidade.

cacos

por Vieira do Mar, em 02.07.10

  © sofia vieira

 

E de vez em quando o reverso, o drama, a destruição, a ventania. Os braços abertos que a deixam fugir, que a empurram para os confins da estrada, e ela a esparramar-se no asfalto, à mercê de qualquer coisa, de quem quer que seja, azaramboada, morta se o arrependimento matasse. Ele a rainha do drama, a fúria do gigante, a insensatez, o desvario, o fim tantas vezes anunciado, o abrigo precário, o sopro do coração. Ele, os cacos que ela apanha do chão e que varre com parcimónia doméstica, o chão que desinfecta com lexívia; os sacos de plástico com os despojos de guerra dos quais ele se desfaz a horas mortas, para que os vizinhos não saibam que o mundo acabou, ponto final, parágrafo. Entre ambos, um silêncio que mortifica, deambulante, uma desconfiança hostil e a certeza de que tudo é nunca, que o que foi já não volta, maldito o dia em que te conheci, esquece-me, odeio-te, morre. A posição fetal e quieta na cama que não mais se desengonça nem descabela, a escuridão onde o mar não entra, o queixume silencioso, a dor rouca, o fado vadio, as malas aviadas à porta, a saída intempestiva que ela ensaia e ameaça, que coreografa vezes sem conta, só para ver se ele a impede. E ele, que umas vezes lhe barra o caminho e que outras, nem por isso.

cordas

por Vieira do Mar, em 02.07.10

© sofia vieira

 

E depois tem a maneira como ele a abraça, nunca vira nada assim. Vira de ver, mesmo. De como os ombros dele se encurvam, contemplando-a toda, primeiro com uma aparência devoradora, como uma piton escancarando as mandíbulas e preparando-se para a deglutir inteira, anestesiando-a primeiro, hipnotizando-a, açambarcando-lhe a pele, crescendo perante ela, tapando-lhe o sol. Há uma falta de ar que se insinua nela, como se pressentisse o fim e nada mais valesse a pena, respirar para quê?, mas depressa cede ao calor daqueles braços que crescem e descem sobre ela, redondos, um cordame que se enrola e aperta, o tronco dele a acompanhar o movimento, a ajeitar-se de lado, descaindo um pouco por forma a fechar sobre ela o círculo, comprimindo-a com uma suavidade determinada de ressuscitar corações. Ele é alto, e por mais que se ajeite e se entorte e a circunde, ela esparrama-lhe sempre a cara no peito, expirando tanto receio como alívio, escondendo o nariz entupido de emoção naquele torso largo, que carrega lá dentro um compasso cardíaco acelerado, o compasso de quem quer guardar o outro para sempre dentro de si, carregá-lo em modo marsupial, levá-lo ao médico, às compras e para a cama, porque senão morre. Depois ele embala-a, como se faz a um bebé, numa cadência fina que transmite a certeza de ainda ali estar no dia seguinte, de pé embrulhado nela, porque não, os cavalos nem sempre se abatem, e ela não sabe se aquilo é amor ou se ele um corta-vento, só sabe que adormece e tudo o que ele podia fazer dela, se quisesse.

Mais sobre mim

foto do autor

Arquivo

  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2017
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2016
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2015
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2014
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2013
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2012
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2011
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2010
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2009
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2008
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2007
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2006
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2005
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2004
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D

Favoritos