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Controversa Maresia

um blogue de Sofia Vieira

Controversa Maresia

um blogue de Sofia Vieira

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por Vieira do Mar, em 18.07.06
Ora sai um kandinsky para a mesa do canto do infantário, fáxavor:

(ou da mobilidade dos conceitos teóricos)


- Mãe, fiz um desenho abstracto.

- Que giro, Joãozinho! E porque é que dizes que é abstracto?



- Porque não deixei nem um bocadinho de papel branco à vista!


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por Vieira do Mar, em 18.07.06
contos sobre o amor ou coisa que o valha


Os contos e historietas que escrevi neste blogue ao longo de pouco mais de dois anos, passarão a estar aqui, para quem os quiser ler ou reler.

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por Vieira do Mar, em 18.07.06
contos sobre o amor ou coisa que o valha


Os contos e historietas que escrevi neste blogue ao longo de pouco mais de dois anos, passarão a estar aqui, para quem os quiser ler ou reler.

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por Vieira do Mar, em 18.07.06
a vida seguinte



Antes de ele começar a falar, já ela o olhava; por vezes, respondia-lhe sem ele nada ter perguntado, adivinhava-lhe os medos e as vontades mesmo antes de estes se formarem na parte ainda consciente do cérebro dele (na que conseguira fugir com o rabo à seringa da doença que o mastigava e engolia, aos bocadinhos, aos quadradinhos de açucar e às colherzinhas de café).

Gozavam-se por aquele corpo dele, um dia erecto como o de um oficial prussiano, agora balançar e a vergar como as hastes de um salgueiro, ao sabor da ventania das sinapses interrompidas pelos seus neurónios moribundos. Gozavam-se por ele, às vezes, a chamar pelo nome de antigas namoradas (o que fazia convicto e sem qualquer sombra de dúvida) e de ela lhe fazer notar o engano, acordando-lhe o sexo com mordidelas delambidas, </font>pensa lámelhor, alguma delas te fazia isto?, e ele, claro que não, e riam-se e depois enrolavam-se os dois, embalados nas tremuras dele (que não eram nada perto das dela, lunares e meteóricas, quando se vinha).

A doença, coisa que eles pensavam de velhos que se babam e apodrecem nos lares, apanhara-os a meio da vida, ali mesmo, no âmago, no centro da alegria dos planos por concretizar e dos projectos por cumprir. A umas trocas e baldrocas com os nomes e as memórias, seguiram-se umas suspeitas vagas, a gestão complicada do medo, muitos exames, a negação e, por fim, um diagnóstico filho da puta e mau como as cobras.

Desde o início, afrontaram a besta besta da única forma que sabiam como (a mesma com que sempre haviam levado a vida): a gozar indecentemente com tudo e todos, principalmente com eles mesmos e com a sua inusitada desgraça. Balançavam-se entre os ataques de riso e de choro e acabavam abraçados, a lamber-se as lágrimas, a saliva e o ranho, e amaldiçoando o dia em que se haviam descoberto (ou antes, redescoberto). Ela estava tão ou mais doente do que ele, claro; sabia-se, aliás, mortalmente ferida: ele tremia por fora, ela por dentro; quanto mais ele se enganava, mais ela se desenganava, na certezinha de que um dia morreriam juntos e de que expirariam no mesmo exacto segundo (era o seu suporte de vida, a sua respiração assistida, essa certeza).

Construíram um novo mundo e envolveram-no n´a doença, como uma espécie de módulo espacial. Passaram a viajar dentro de casa: sentavam-se no tapete de kairouan, pegavam no mapa mundi, escolhiam criteriosamente um destino e passavam dias a imaginar as paragens no caminho, as pernoitas, os incidentes de percurso, as pessoas, os cheiros, as comidas, a temperatura, a cor do céu e o temperamento dos nativos. Enfeitavam-se com caftans marroquinos, mantas de lã peruanas e sombreros mexicanos, comprados em feiras de artesanato ao péda porta, e fumavam puros, enquanto ela cozinhava chilaquiles e moqueca, ao som de colectâneas putumayo de world music.

Abalançaram-se, portanto, a uma vida de brincar no confino das quatro paredes da casa onde viviam (ele tinha medo de sair, de cair, de ofender, enfim, de falhar). Às vezes, divertiam-se a valer e acabavam no chão da sala ou na cama, rebolados de riso, no final inglório de fodas humorísticas (de tão mal sucedidas), após festins com dildos e outros brinquedos de geometria rara (daqueles que colmatavam os espaços vazios que eram a memória e a tesão dele, e que preenchiam, com eficácia variada, um outro tipo de espaços vazios, os dela).

Nunca esconderam a doença dos outros e tinham, vezes sem conta, a casa cheia de amigos, em noitadas de copo na mão, a contarem-se anedotas sobre velhos, parkinsons, alzheimers, cancros e decrepitude em geral, num exorcismo colectivo do medo.Ao fim de alguns anos e de várias voltas ao mundo, percorrido o cancioneiro popular mundial e envergados os trajes típicos das nações unidas e das ainda por unir, a coisa começou a complicar-se. E a destruição progressiva do cérebro, a perda do gosto, do tacto, do prazer, do riso e - pior - a perda da capacidade de imaginar tudo isso, foram-lhes carcomendo as resistências, inicialmente acolchoadas com ironia e almofadadas com amorosa inteligência.

E, de repente, num dia como outro qualquer, ela olhou-o e soube que já não era ele que ali estava, mas apenas um invólucro, uma pele seca de bicho, que se descascara, caíra e ficara para trás, misturada com as folhas e a terra, desfazendo-se em húmus. E percebeu que chegara o momento de o deixar ir, pois só assim poderia continuar a seguir-lhe o trilho. Pegou ao colo no que sobrara dele e pouso-o sem pressas na água morna da banheira. Viu-o adormecer. Medicou-se excessivamente e deitou-se ao lado dele; os dois, ali, abraçados, por fim num sono sem sonhos nem tremuras.

Reencontraram-se do lado de lá, dizem que ao som de violinos, e que ele terá desatado a correr via láctea abaixo, num passo firme e coordenado (daqueles de atleta), a abraçá-la com tamanha força que ela terásentido estalarem-se-lhe as vértebras, sob o fulgor feliz daquele amplexo musculado. Parece que se sentaram algures por ali, à conversa, onde aguardaram a passagem da vida seguinte, para dentro da qual saltaram, de um pulo e de mãos dadas, mal esta lhes abriu as portas da frente.

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por Vieira do Mar, em 18.07.06
contraponto




Tinham avançado aos solavancos, como um daqueles carros engasgados com o depósito atestado de gasolina suja; haviam-se dado um tempo para, logo a seguir, quase cederem à voragem do mergulho; tinham-se imaginado a tez e os tons de cabelo, depois comprovado a espessura da voz e medido os silêncios, embalados na cadência da respiração de cada um do lado de lá do telefone; tinham-se mantido no fio da navalha que é aquela conversa que balança entre o luminoso e o banal; tinham-se roçagado pequenos gostos e vontades (rasas, daquelas de superfície), eu gosto disto, eu prefiro aquilo; haviam-se calado de súbito na escrita porque a estranha proximidade das respirações, seguidas dos milimétricos silêncios e coladas ao ouvido de cada um, lhes estrangulara o encanto das palavras (embora nessa ausência se pressentisse já o encanto da voz); tinham-se gostado das vozes: a dele, calma, a fazer-lhe ver, a cada nota, a ponderação sintática e estática que poria (presumivelmente) na sua vida e que já lhe havia dado a entender nos textos que lhe escrevera; a dela, meia urgente e desconexa, desarrumada, como ela mesma, sempre à beira do excesso e do riso, e recortada aqui e ali por baixios deliberados (com os quais pretendia suavizar os contornos da excitação que por ela subia sempre que à beira de conseguir algo, mas quando ainda cá em baixo, de braço estendido e com a ponta do dedo quase a tocar esse algo). Gostara ela, em especial, do contraponto que as vozes de ambos se haviam produzido: um contraponto sincopado que lhe soara quase a música (um dueto de tenor e mezzo soprano, talvez); e não fazia a mínima ideia por que razão dava por si, a meio do dia, por entre as infindáveisirrelevâncias burocráticas em formato A4 que rubricava a seco, a pensar naquele contraponto e a sorrir, cheia de vontade.

Era um facto: aquela vontade, ultimamente, picava-lhe o ponto todos os dias - e trabalhava (-a) em hora de expediente.

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por Vieira do Mar, em 18.07.06
erro de casting



Hoje, convence-se de que </font>não o viu porque não o quis ver, apesar da vigorosa certeza, martelada dentro dela por uma convicção marceneira, de que, no seu campo de visão, não se encontrava ninguém que correspondesse à ideia que fizera dele.
Relembra o momento como se fosse o ainda. Alheia aos mistérios da semiótica escondidos na escrita críptica de Umberto Eco, balança o olhar entre as transparências do gin tónico (amolecido pelos minutos a mais), as espessuras do rio à sua frente e os gestos voláteis dos que chegam e se vão sentando. Abre e fecha o livro ao ritmo do próprio pêndulo que lhe deu o nome, ajusta os óculos escuros à cana do nariz com uma urgência distraída, emudece com a língua os lábios secos da espera e vira-se de quando em vez para a porta da entrada, não vá ser surpreendida enquanto finge que não se surpreende.

Ele jura-lhe que sim, que esteve lá, que a fitou intensamente, que se corresponderam por segundos através das lentes escuras com protecção UVA; ela garante-lhe que não, que varreu a superfície de todas as mesas, de todas as cadeiras e seus ocupantes, como a luz de um farol varre a superfície do mar numa noite sem lua, mas não, não o viu. Decerto ele não fora, haveria um engano qualquer. Ele insiste, confuso; confirma-lhe a presença invisível, descreve-a, e ao seu movimento pendular; fala-lhe das suas mãos a braços com o copo de gin, do livro emaranhado de letras a fazer de mero adereço, e do rio ( corrente de propósito acusador, pensa ela, que lhe aponta o dedo à passagem e lhe torce o nariz de desdém).

Enquanto lá está, a ela às tantas (e embora bafejada por uma maresia ventosa), falta-lhe o ar e mirraram-se-lhe os pulmões, como se Lisboa à beira Tejo mais não fosse do que um gigantesco elevador encravado entre andares; ganha-lhe terreno uma impressão levezinha de pânico, muito leve, só as pontas dos dedos do pânico, melhor, só a ponta do dedo mindinho do pânico, a roçar-lhe a nuca e as palmas molhadas das mãos, enquanto o estômago se lhe emperra na tentativa de centrifugar o meio gin engolido sem fé.

E pronto, o arremedo do medo afia-lhe a atenção como a ponta de um lápis e aguça-lhe os sentidos, e ela, dotada de uma súbita super visão e talvez de outros poderes, separa-se de si mesma e, pairando sobre as águas do rio emfrente (que lhe franze as sobrancelhas), observa, analiticamente, a apneia pendular que domina aquele corpo que lhe é exterior, ora debruçado sobre a mesa, ora a girar sobre si próprio. Vê-se sentada à mesa, desgarrada, desfazada e fora do contexto daquilo tudo; fecha os olhos, cede aos murmúrios do rio (que corre em baixo num tom de censura) e recusa-se a olhar à volta e para além de si própria, dando por finalizado o tempo de antena do faz-de-conta.

Porque é nesse momento - nesse exacto momento - que se abate sobre ela a consciência de a sua presença ali resultar de um flagrante erro de casting, do qual se teria decerto apercebido mais cedo, não fora o barulho das luzes e aqueles arrepios todos colados à pele, decalques da ideia que fizera dele.

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por Vieira do Mar, em 18.07.06
diz-me o teu nome




Chamava-se Inês e ele sabia-o, desde o primeiro dos muitos mails que haviam trocado. Diz-me o teu nome, pedira-lhe ela a dada altura, diz-me como te chamas. E ele, que assinara </font>CB naqueles meses em que, à desgarrada, se haviam trocado memórias foscas e aldrabices pegadas, escreveu-lhe no dia seguinte e disse-lho. Ela, que queria caçar-lhe os desejos e as antigas namoradas, saltou com o olhar aos pulos a parte em que ele lhe descrevia os seus demónios em luta enquadrados no luar minguante, e aterrou logo no fim do texto. Saboreou-lhe o nome como se derretesse um quadrado de chocolate contra o céu da boca e o coração bateu-lhe mais forte na garganta, à ideia de ter dado um passo de gigante na direcção dele. Pedro, Pedro..., Pedro e Inês, pensou, é giro, lembra uma coincidência cósmica, assim uma coisa de karma.

Horas depois, a coberto do negrume da noite (uma noite abre-latas, corta-sebes, descarada e rasante, mata-bicho e sem-vergonha) devolveu-lhe a confidência com empenho inusitado. Falou-lhe dos molhos de crisântemos que todos os anos lhe debruavam as traseiras da casa de família e de como na terra dela se chamavam despedidas de verão por florirem ali mesmo, no sopé do Outono. Envolveu cada palavra num calor íntimo e atrevido e anexou-lhes uma foto dos roxos e púrpura que lhe pintalgavam a entrada da cave. Mas uma foto, calma!, devidamente escortanhada no photoshop, estirpados os degraus de madeira (construídos pelo pai, quarenta anos antes) e os vasos de alfazema que enfeitavam a balaustrada, não fosse ele, sei lá, ter algum um dia rondado a casa e poder reconhecer as despedidas e a lavanda, num instante de namoro com a madeira carcomida (ela queria-o, mas não tanto, nem tão cedo).E foi então, embriagada pela ideia de proximidade que os odores da provença espalhavam pelo alpendre beirão, que no fim acrescentou a primeira letra do seu primeiro apelido, um C, seguido de um ponto. Queria-o a fantasiar, C de Costa? de Correia? de Castro (teria a sua graça)?, mas era ela que se interrogava se ele sentiria a mesma excitação infantil, como um puto que antecipasse uma ida à feira ou ao cinema.

Dormiu mal, domando a custo a ideia selvagem de sair a meio da noite cidade fora, rebolou-se ao correr de cama e achou que havia sonhado com tudo menos com ele, até perceber que o tudo com que havia sonhado, até aquela estranha chuva de balaústres, flores do campo e pernas de mesa, era ele (porque qualquer coisa podia ser ele, tudo n´ele cabia: era uma página, um rosto em branco, prestes a receber um esboço de feições).

De manhã, agarrou-se até ao gabinete no centro onde trabalhava e, só depois sorver um café aflito e de a dentada na sandes de queijo se lhe ter atravessado nas amígdalas, entrou na caixa de correio. A conversa era a mesma de sempre: fragmentos de vida, bocados de gente e ideias pouco convencionais sobre a existência, coisas que lhe aceleravam a imaginação e a aqueciam, dentro da cela fria onde preenchia, das nove às cinco, declarações de IRS e de IRC. Novo salto de canguru para o fim, onde leu Miguel. Miguel? Ele assinara Miguel. Seria Pedro Miguel? Não era. Nos dias que se seguiram, os textos dele, cada vez mais pungentes e em chaga, chegaram-lhe com um nome diferente. Paulo, Tomás, Lucas, Manuel, Diniz, esgotou os apóstolos, depois os reis portugueses: um nome diferente a cada manhã, a rematar-lhe a carne viva, as feridas abertas que ela agora conhecia tão bem. As feridas de um cadáver sem nome, por identificar, de um qualquer John Doe guardado numa morgue e dissecado por ela, médica legista, a conhecer-lhes as causas, exactas e profundas, mas não o sujeito.

Encaixada a frustração e arrumada a um canto, pronto, já está!, ela foi em frente e a cada nome, a cada recuo depois do avanço (que eram as palavras que ele deixava cair, o rei manda dois passos à caranguejo), avançava com mais uma letra do seu apelido, que completaria pouco depois, agora procura-me na lista, indaga-me no cento e dezoito, nas finanças e na segurança social, que eu cá te espero. E ele nada, nadinha shiuuuu!, um cliente alheio e ausente num bar de strip, calado que nem um rato, o fundo de um poço, o olho do furacão, silêncio absoluto por entre a profusão de palavras que lhe despejava no colo. Não obstante, ela continuou, a lê-lo, de pernas abertas e alminha escancarada, a imaginar que ele entrava nela a cada confissão nocturna e a suspirar, a inspirar, a expirar.

Um dia, já exposta até ao osso e deitada nua ao relento dele, a pele arrepiada de galinha ao calor húmido que emanava de cada palavra que lia, ele deixou pura e simplesmente de lhe escrever. Acabou, assim, sem mais nem porquê, como diria Chico.E ela, depois de vários mails sem resposta, nos quais lhe pedira desculpa por qualquer coisinha, assinando apenas Inês, lá se resignou ao dia-a-dia (que voltara para a enrodilhar e esmifrar no seu torno de indiferença, apático e metódico) e voltou a usar o correio electrónico só para a troca de minutas e balancetes com os seus colegas contabilistas.

Por acaso, casou-se com um, que lhe ofereceu a alma e lhe derramou as entranhas sobre a mesa de café logo ao primeiro encontro, mas nunca esqueceu o estranho apóstolo-rei que a ensinou a uivar à lua, nas noites em que esta se lhe oferecia de bandeja, em soturnos quartos minguantes, enquadrados no caixilho de alumínio da janela suburbana.

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por Vieira do Mar, em 18.07.06
a osteoporose das palavras



Ultimamente, as palavras soavam-lhes esburacadas e as conversas surgiam minadas pelo vazio mais elementar. É certo que as meras conveniências lhes saíam certinhas e em fila-para-o-pão, umas atrás das outras, respeitosas e educadas; mas as frases sobrantes (e que eram todas as outras) traziam sempre um significante a milhas do significado. Um olábomdia que era disparado como um fodasseaindaquiestás, um adeusatéamanhã que era mais um hojedurmonosofádasala, ou um vouchegarmaistarde que soava a nãomapetecejantarcontigo.

E assim por diante, lá iam vivendo os seus ritmos solares, separados por crateras de repente vazias e regendo-se ambos pelo mesmo dicionário de significados ocultos, incapazes de verbalizar o rancor ou o que fosse que lhes corroía os ossos. Nunca chegaram a perceber como a borda se esboroara e haviam mergulhado naquele buraco negro aberto no meio do chão da sala de estar; um buraco que era o oposto do amor, a anti-matéria, a anti-carne ; que era, no fundo, o contrário do ser qualquer coisa. Falavam-se enquanto olhavam para a televisão, para o jornal ou para as paredes, alheios à ausência das respostas que não pediam; utilizavam-se de um léxico reduzido, forretas em adjectivos e esparsos nos verbos (fui. vou. cheguei. saio. fico. demoro. telefono. durmo.), assim satisfeitas as necessidades básicas da fala e assegurados os serviços mínimos do convívio matrimonial. À greve das palavras juntara-se a greve dos toques, dos cheiros e das cumplicidades, numa paralisação geral que reunia todos os sindicatos do sector amor e indústrias adjacentes.

Nenhum soubera ao certo quando a doença começara e por qual deles se disseminara primeiro, contagiando depois o outro com a virulência de uma febre hemorrágica. Talvez depois daquela última discussão em que ambos tinham gritado um bocadinho mais alto e dito coisas um bocadinho mais imperdoáveis do que as do costume; sim, essa! em que resolveram arriscar o arremesso de duas ou três verdadezinhas de pouca monta, demasiado parecidas, no entanto, com granadas de mão: só fazem estragos quando as sacamos do bolso, lhes puxamos a cavilha e as atiramos com o fim de rebentar alguma coisa. Teria sido isso? Ou teriam apenas gasto as palavras (como dissera o poeta) naquela puta manhã de desgoverno? Não sabiam. Certo é que, finda a guerrilha e o rastejo no mato conjugal, haviam se remetido ao silêncio. Apenas. E uns dias foram chamando os outros, baixinho, de assobio, péantepé, como quem não quer a coisa e passa de manso pelo corredor, à noite, até chegar à cozinha sem acordar ninguém.

Um dia, a propósito de um recado que ele trazia para ela, foram obrigados a se atentarem de novo, olhos nos olhos, eu-emissor-tu-receptor, e ali se retomaram, pegando-se onde se haviam largado, no embalo das palavras que lhes chegavam e lhes pousavam na língua, como as primeiras andorinhas nos beirais, primeiro nervosas e envergonhadas e, depois, em bandos, às revoadas, milhares de asas conversa fora. E, num ápice, como se engolissem litros de leite de uma vez e se atestassem de ferro e cálcio por toda a vida, curaram-se do que os minara por dentro, sem bem se aperceberem de que, por todas as palavras que haviam dito a mais, haviam sofrido o correlativo calvário das palavras a menos, num superavit que redundara em déficit, e que a sobrevivência do que tinham juntos era apenas uma questão de equilíbrio natural, como acontece com qualquer espécie animal.

Porque o amor, como todas as coisas periclitantes no limiar da sobrevivência, é uma bailarina em pontas, um trapezista, um bêbado que se poupa a testa ao candeeiro de rua, um beija-flor num ramo em dia ventoso; e esta coisa do bem-querer-até-não-mais-poder, ora lhe dá de frente ora empurra de trás, tanto puxa daqui como empurra dali e, quando chega acolá, já está outra vez de partida. Porque o amor (embora eles não o soubessem) éuma balança antiga de mercearia com todos os seus contrapesos de ferro: neste prato, quinhentos gramas de conversa, no outro, cento e cinquenta de silêncio; para quatrocentos gramas de abraços e cinquenta de chupões no pescoço, cento e vinte gramas de tédio e trinta e cinco de coisas que nunca deveriam ser ditas.

E foi então que, nesse fim de tarde, depois de esmiuçado o recado até à sua improvável minudência, numa riqueza descritiva seguramente não prevista pelo mandante de coisa tão simples, se ofereceram um quilo de paixão avassaladora, entremeado por duzentos e cinquenta gramas de filmes no sofá, cem de riso à toa e setenta e cinco de interjeições e expressões idiomáticas, no caso, perfeitamente dispensáveis.

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por Vieira do Mar, em 18.07.06
SMS



Era óbvio que ela subestimara o poder erótico de um SMS e baixara a guarda, por assim dizer. Ficou a olhar, parva feita, para as letras que rebrilhavam no ecrã de cristais líquidos, gosto mesmo de ti, miúda, com a vírgula no lugar certo, com todos os éfes e érres, sem aquelas abreviaturas na moda, nenhum amt, adrt, bjs, LOL, xis ou kapas. Deu por si a soletrar mentalmente aquela palavra, mêjemu, mêjeeeeemuuu, a demorar-se nas vogais e a amarfanhá-las sob a língua dobrada, esmagando-as e alisando-as como um rolo compressor sobre o asfalto, enquanto o coração batia cada vez mais depressa e cada vez mais em baixo, pum pum, pum pum.

O gosto de ti, verdade se diga, fora-lhe absolutamente fatal: gosto (mesmo) de ti e pumba!, a dor do prazer físico não gozado acertara-lhe direitinha na espinal medula, como uma punção lombar. Um amo-te, teria soado a banalidade descartável e falsa, a roçar o piroso; já um adoro-te, teria parecido exagerado, lembraria devoções cegas. Mas não. Apenas um gosto mesmo de ti, miúda, como quem escreve, gosto tanto de ti que me apetece foder-te aqui e agora, gosto tanto dos teus mucos e cheiros e glândulas sebáceas e pêlos e ácaros microscópicos, que me apetece identificá-los, catalogá-los um a um e depois saboreá-los a todos; e roçar os teus taninos contra o céu da minha boca, gargarejando-os em seguida, como um escanção numa prova de vinhos; gosto de ti de tal forma que não tens hipótese nenhuma porque eu, o lobo mau, quero mesmo comer-te e vou apanhar-te, porque gosto mesmo de ti, gosto mesmo de borrego assado no forno com batatinhas àpadeiro, é o meu prato favorito.
E ela, a arfar baixinho, a olhar para aquelas quatro palavras, perfeitas, rematadas por um perfeito ponto final, o cérebro a ordenar um delete ao polegar mas este a resvalar para o save, o desejo a escorregar pelas ravinas dela abaixo sem se conseguir agarrar a coisa alguma na descida, desamparado, por ali fora e ali vai ele. E, depois, a história do miúda. De mulher, passara de repente a miúda, frágil e virginal, com vontade de lhe saltar para cima naquele exacto momento e de voltar a aprender com ele o bêabá da pele, de mergulhar no visor iluminado e de o encontrar nos circuitos electrónicos, um predador à caça dela, acoitado algures entre a memória do cartão SIM , o menu e a lista de contactos.

Que não restassem dúvidas: cada letra de cada palavra havia sido escolhida com uma precisão cirúrgica; a intuição dele, uma estalactite aguçada pelo roçagar permanente do desejo, fizera-o disparar um autêntico aríete na direcção dos centros nervosos dela: uma frase pequena, descomprometida, depurada de juízos de valor e de figuras de estilo, destilada no puro e simples alambique da tesão. Adivinhava-lhe a expressão de gozo, triunfante e malévola, e sentia-se cordeirinho, capuchinho e avózinha, prestes a mergulhar na floresta negra das árvores falantes e sabendo de antemão que se iria perder dentro da sua própria cabeça, muito mais perigosa e traiçoeira do que a pior das intenções dele. Porque, bem o sabia, nós só fazemos o que queremos (quando não o fazemos, é apenas porque não o quisemos o suficiente). E ela, queria-o.

Fechou os olhos, destravou a ponta da língua, tocou no visor do telemóvel e lambeu-o, engolindo as palavras uma a uma, como se o devorasse inteiro e, depois, ele seguisse o curso natural das coisas mastigadas, esófago abaixo, e acabasse dissolvido nos seus quimo e quilo, sem dó nem piedade. Um travo amargo teimava em acompanhar-lhe o gozo da ingestão, como o sabor quase azedo de um leite esquecido ao sol. Ainda a outra mão lhe descia pelo corpo abaixo, ao ritmo desgovernado da fantasia, gosto mesmo de ti, miúda, quando o telemóvel tocou. Sem abrir os olhos, ela lambeu os dedos molhados e usou o indicador para atender a chamada, antecipando a voz dele, anasalada e sem ponta de graça.

Não devias ter telefonado, adiantou-se-lhe.

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por Vieira do Mar, em 18.07.06
então, anda cá



Esperou, paciente, que a última pestana dela se libertasse do peso do rimmel. As suas formas de violoncelo, os cabelos pintados e o seu halo insustentável de mulher, lembraram-lhe as de uma actriz antiga e imaginou-a a banhar-se numa fonte romana. Há muito tempo que não a via e soube então que lhe sentira a falta. Esquecera-se de como ela demorava horas em frente ao espelho, como se a noite lhe pertencesse por atacado, numa velha pantomima feita de gestos de dança, suaves e cronometrados, como o princípio de um pas de deux , no qual se despia do seu eu de rua e fingia ignorar o desejo dele. Matou as saudades, algodão a algodão, óleo a óleo, máscara a máscara. Haviam passado tantos anos! O que fizera ela? Por onde andara, enquanto cumprira os múltiplos rituais do dia? Resolveu quebrar o silêncio. Os miúdos, já estão a dormir? Ela virou-se e fitou-lhe o umbigo. . Ele sorriu. Então, anda cá.

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por Vieira do Mar, em 18.07.06
time sharing




Aquilo fora um erro, um tremendo erro. Haviam decidido não vender a casa de férias, partilhá-la à semana, primeiro tu, depois eu, assim os miúdos sentem menos, está bem, mas quando chegar com eles não te quero ver por lá, já sabes, tira as tuas coisas todas, não quero os pêlos do costume a boiar no ralo nem a tampa da sanita levantada e muito menos a máquina atafulhada com loiça seca, quero tudo impecável, está bem, estábem, não te preocupes, e podemos levar outras pessoas, afinal, somos livres de o fazer, sim, mas temos que ter cuidado com os miúdos, cuidado, claro, claro, há que ter a certeza, de quê?, bem, de que a pessoa que trazemos connosco é, pelo menos, uma relação estável, para não os traumatizarmos, aos miúdos, pois, sim, está certo, pois, tens razão, então, fica assim combinado, uma semana a cada um.

Mas, mal metera a chave àporta e logo o vislumbre das paredes brancas lhe gritou aos ouvidos que aquilo fora um erro. Gritava-lhe tanto, mas tanto, aquele relance do que fora tão vivido a dois (depois a três e por fim a quatro), que quase a ensurdecia, como uma frequência baixíssima que apenas ela ouvisse, um apito inaudível que enxotasse um animal indesejado.

Os miúdos, esses, correram por ali dentro, aliviados pelo fim da tensão que supusera a troca de mãos do dia anterior, a deslarga do pai seguida do agarranço da mãe.

A separação havia sido amigável a bem das crianças e a cordialidade entre ambos amaciara-lhes a queda, mas a aparente normalidade soçobrava sempre naqueles momentos de troca, de transvase, quando passavam de um para o outro. Porque era então que elas se apercebiam de que os pais já não se sentavam lado a lado no sofá da sala, e que já não lhes bastava dar um golpe de rins para aterrarem no colo de um ou do outro: agora, cada sessão de abraços precedia minuciosas negociações e cada carreirinha de beijos obedecia a uma estratégia previamente planificada (uma maçada um tudo nada dolorosa, como uma picadinha de insecto).

E a vida lá ia seguindo, quase sem mossas, e ali estavam eles outra vez, com a mãe na casa da família, no mesmo sítio onde haviam estado com o pai toda a semana anterior e com a mesma mãe, na semana anterior àanterior. Era um bocadinho estranho, só isso, um bocadinho estranho, esta coisa de se revezarem nas brigas e nos afectos e de terem de contar a mesma história duas vezes, mas era bom na mesma, afinal, férias eram férias e a praia estaria, como sempre, à espera deles, sem nunca os desiludir (ao contrário de certas pessoas).

Ela viu-os disparados na direcção dos quartos e deixou-se ficar para trás, arrastando os pés e as memórias, que entretanto lhe explodiram à frente dos olhos como um fogo de artifício, daqueles gigantescos de comemoração centenária. Correu as paredes vazias e atentou nos contornos empoeirados onde antes haviam estado, emolduradas, imagens de dias mais felizes, retiradas de comum acordo porque desprovidas de sentido, à luz do estado actual das coisas lá deles. Nada de pessoal, haviam-se pedido, nada que nos lembre sorrisos, passeios, nem amores a quatro e muito menos a dois, como uma casa que se alugue a estranhos. E assim fora: entrava na sua própria casa como uma inquilina, a apalpar os cheiros e as formas.

Decidira-se a dormir no sofá da sala, que a ideia de se deitar na mesma cama onde, dias antes, ele havia quase de certeza estreado acrobacias de amor, não lhe era por enquanto suportável (devia ser mais bonita do que ela, mais nova, mais alegre, a outra...). Precisaria, no entanto, de usar a casa de banho, para o que teria que atravessar o quarto de casal (de que casal?). Tirou toalhas lavadas e a necessáire da mala de viagem que fora de ambos (agora demasiado grande, demasiado vazia) e entrou, evitando a visão da cama que guardava tantos suspiros e silêncios embrulhados, planando sobre o soalho e sustendo a respiração como quem atravessa um pântano sulfuroso. Quando aterrou por fim na casa-de-banho, o cheiro a ele atingiu-a como um insulto, uma ofensa grave, rasante e demolidora; poderia relatar, com a minúcia de um técnico forense, que partes do corpo dele haviam andado por onde e a fazer o quê.

Olhou para o espelho e viu reflectido nele o desconforto triste por se sentir ainda a metade de qualquer coisa (só um braço, uma perna, um só olho, meio nariz...) e apenas os risos de satisfação dos miúdos no quarto em frente a impediram de correr dali para fora, fechando as portas todas atrás de si, a cadeado, a sete chaves, a ferrolho e aldraba de castelo.

Nessa noite, depois de um pedaço de pizza mal engolido num espaço sobrelotado e de duas voltas a uma feira de artesanato mexicano made in china, depois de adormecida a excitação infantil à custa de promessas de praia, abancou sorrateiramente no sofá da sala, com um lençol por cima das pernas e o comando da televisão na mão, de costas para o corredor e disposta a ignorar a verborreia sussurante do passado que se fazia ouvir dentro dela, como burburinho de mercado por janela entreaberta. E foi então que, a meio de um episódio das marésvivas, o mais novo lhe apareceu à frente num queixume estremunhado de sede e, ao vê-la ali deitada, lhe perguntou por entre bocejos, mãe, porque é que tu e o pai, agora, dormem sempre sozinhos no sofáda sala, quando nos trazem para a casa de praia?

E, no escuro, ela sorriu, vá, anda lá que eu dou-te um copo de água.

...

por Vieira do Mar, em 18.07.06
no aeroporto



Ele esperava, mãos nos bolsos, mãos fora dos bolsos, os dedos ao correr da bainha do casaco num samba trôpego de caixa de fósforos; os olhos olímpicos, a sprintar a sprintar, no placard das chegadas, para cá para lá, para cá para lá, delayed, on time, cancelled, delayed, on time, arrived, arrived. Gastara já o maço que não fumara, nunca fumara, que jeito lhe daria, agora, um viciozito, um andarilho, um apoio qualquer, para os sentidos em alvoroço que lhe tricotavam a pele de galinha.
Haviam passado três meses. Três meses, apenas, e os olhos dela sabia-os castanhos porque conhecia a cor castanha, que era a do chocolate derretido nas mãos daquele miúdo colado à mãe desatenta, que também esperava alguém (Ou, se calhar, esperava, como ele, os contornos esbatidos de alguém). Mas, na verdade, não recordava os olhos dela, esquecera as especificidades dos rebordos exteriores, o palpebrar afirmativo, as pestanas loquazes; esquecera-se dos segredos escondidos naquele pestanejar altaneiro, de quem olha do cimo da torre da Igreja a paisagem ao redor, em óbvio conluio com as cegonhas residentes e abarcando todas as coisas. Sabia que eram castanhos e que eram olhos, os dela, nada mais. Hesitava igualmente na cor dos cabelos... cedeu à tentação de espreitar a foto tipo passe, que dormia e ressonava num recanto da carteira, não podia ter-se esquecido, caramba! Algures entre o ruivo e louro, queimados pelo sol, um molho de trigo tardio, por colher, seria natural, o tom dos cabelos dela?Que absurdo, tanto tempo juntos e nunca se lembrara de lho perguntar... Cheiravam bem, cheiravam sempre bem e ele sabia a quê, mas não conseguia reconstituir-lhes o odor, como florista constipada que cheirasse uma rosa. As mãos eram compridas, sim, espera, mas os dedos eram curtos, então, decide-te, mãos compridas e dedos curtos? Olha, que se lixe.

E, de repente, lá estava ela, arrived, assim, escarrapachado, a piscar, no placard, e pronto. Face à inevitabilidade do reencontro, deu-lhe o pânico, quis fugir, faltou-lhe o ar; inspirou fundo, limpou-se do suor que lhe cascateava pelo corpo mas escapou-se-lhe um fio salgado, que escorreu vértebras abaixo. Como haviam tido a veleidade de achar que um oceano entre eles, durante alguns meses, seria coisa pouca, um mosquito fraquinho a picar em vão a pele de um amor que eles pensavam endurecido, resistente às nódoas, curtido pelos anos?

Que ingénuo fora. Onde estava agora a imagem dela, onde? Quem era aquela do lado de lá do vidro da alfândega, à espera das malas onde trazia consigo as memórias dos meses que eram só dela e que não eram dele? Traria dentro de alguma a cor dos olhos de alguém, um pestanejar corrido ao sabor de beijos roubados? E escondido na necessaire, entre a a água de colónia e o creme de noite, traria o cheiro palpável dos cabelos de quem? E dentro do livro que viera a ler no avião, a marcar a página, estaria a lembrança perfeita de uma outra mão, com dedos medidos a regra e esquadro? Talvez. Talvez a distância, afinal, não consolide nem prove nada, talvez seja filha da mãe e se de finja amiga e depositária de tesouros, mas de facto nos impeça de nos desvelarmos e de acarinhar o que está longe.
Pronto, estava decidido: a distância era, sim, o maior de todos os males, o inimigo declarado, mas a distância física, mesmo, aquela feita de passos em sentido contrário, aquela que transforma íntimos inseparáveis em estranhosinimigos, costas com costas, contando e andando, um, dois, três..., sempre a contar e sempre andar , cada vez mais longe um do outro, até se esquecerem das razões pelas quais se queriam bater e se esfumarem no nevoeiro matinal sob o peso da lonjura.

Lixada, esta coisa da lonjura. Dos quilómetros entre. Nunca deixem que lhes digam que não é assim, que um verdadeiro amor resiste a meses, a anos e a quilómetros a fio. O tanas, é o que é. Porque os amores nunca são um só, são dois, três, vários, e solidificam uns sobre os outros: se, quais arqueólogos, os desenterrássemos a todos, cavando para baixo e na vertical, e se os datássemos com carbono como ossadas, veríamos que se encontram em camadas sobrepostas de mil-folhas, agora um, depois o outro, que cobre o primeiro, um terceiro, que enterra o segundo, e por aí fora.

É que a nossa natureza, carente e voraz, espreita sempre por uma aberta para ferrar o dente e não está para grandes esperas nem solilóquios de ausência.. Os braços pedem abraços, as pernas pedem encostos, beliscões e entrepernas, os olhos gritam por queixos, unhas pintadas e pontas de narizes queimadas pelo sol, o sexo demanda línguas, mãos, arrepios e outros sexos, enquanto a cabeça demanda tudo isso e muito mais.

O Amor é fácil, é um gajo dado, oferecido, está sempre disponível, faz-se promoção, vende-se com desconto, é de quem o apanhar. É planta baratucha, atrofiada em vaso de plástico, das que dispensam estufas e resistem a geadas, pedindo gotinhas de água e bocadinhos de luz. Que o que o Amor almeja, no fundo, é apenas fotossíntese. Fotossíntese e basta: toma lá, dá cá, troca por troca, estás bonita, já sabes da última? vamos almoçar? despe-me as cuecas, faz-me uma massagem, senta-te aqui, fiz-te uma torrada, hoje não quero, a tua mãe é uma chata, beija-me a nuca, vamos ao cinema, não me interrompas, abre as pernas, muda de canal, queres sumo ou cerveja? hoje passeias tu o cão, dá-me uma massagem, já leste isto? amanhã vamos de férias, trouxeste-me o que te pedi?

Olha, é ela, está ver se me vê, parece diferente, não percebo se para melhor ou pior, não lhe vou dizer nada, será que me reconhece?Enquanto ele fingia inspeccionar, com interesse de antropólogo, o cromatismo dos trajes da queniana que o circundava com o seu perímetro de cintura alargada, ela vislumbrou-o e, topando-lhe a farsa, aproximou-se dele e murmurou-lhe um psst ao ouvido direito. Ele virou-se, num surpreendido quase perfeito (não fora aquela antecipação de um milésimo de segundo) e abriu o rosto num sorriso de boas vindas de guia turístico com letreiro ao pescoço. Abraçaram-se circunstancialmente, deram-se dois beijinhos na cara, ele pegou-lhe no carrinho que lhe transportava as malas e dirigiram-se ao parque de estacionamento, calados.

Não a conheço, já não sei quem é. Hesitou no que fazer. Às vezes, pensou, mais vale depositar uma nova camada sobre a anterior e começar de novo, porque o nosso eu antigo, quando cristaliza no que faltou ou houve a mais, não permite retomas nem acrescentos. O que quer que tenha existido antes, está enterrado para datação futura, essa é que éessa. Pousou o carrinho, olhou para ela, sorriu-lhe de verdade, com os olhos todos, fixou-lhe as pálpebras para todo o sempre (pensou-o então) e disparou-lhe, com a solenidade própria de um desconhecido, Olá, prazer em conhecer-te. Ela percebeu-lhe o esquema, a manobra, o reviralho, o génio da ideia, a intenção e a perfeição de tudo aquilo e retorquiu, Olá, o prazer é todo meu. E ele, Queres jantar comigo? Ela, Terei de consultar a minha disponibilidade de agenda.

Explodiu-lhes, então, um fogo de riso de artifício que lhes abriu, ziiip!, como um fecho de correr, o peito até então oprimido pelas memórias esquecidas que ambos haviam passado o dia a catar no pó, como duas galinholas tontas, e lá foram, descobrir-se, num estranho blind date.

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por Vieira do Mar, em 18.07.06
a verdade, basicamente



Pensara em dizer-lho um milhão de vezes; a vontade de lhe vomitar em cima o que acontecera naquela noite, assaltava-o nos momentos mais estranhos: enquanto ela lia uma revista sentada na sanita, cortava as unhas dos pés ou pintava as das mãos, ou enquanto desembaraçava o cabelo em frente ao espelho. Era como se a insignificância dos rituais diários dela pudesse, de alguma forma, tornar pequeno e de somenos aquilo que elel he queria revelar, como se fosse algo igualmente mecânico e descartável, venha daí outra coisa qualquer e sigamos para bingo.

Uma vez, pensara em dizer-lho enquanto ela se depilava numa operação demorada de cera a frio. Olhava-a, febril (ela, concentrada que estava naquele timing perfeito do espalha-arranca), antevendo o momento em que lhe despejaria em cima o seu balde de revelações sujas, qual porteira distraída.

O que ele não supunha era que ela, careca de saber da angústia culposa que lhe roía as noites, se concentrava sempre um bocadinho mais nas unhas, nos pés, nos cabelos e se mostrava totalmente indisponível para a abébia que ele queria que ela lhe desse. Se entrava na casa de banho, ela saía de rajada em busca de um creme esquecido e, se se sentava ao seu lado na cama, a ela, assomava-lhe um sono súbito que lhe toldava a percepção. Outras vezes, quando ele estava quase, quase, lembras-te daquela noite em que eu..., ela atalhava, ceifando-lhe as palavras tossidas por entre suores frios, passas-me o papel higiénico, por favor?, ao que se seguia uma reflexão sobre a pasta de papel e o seu peso nas indústrias poluidoras. E ele lá ia adiando a confissão, adiando uma e outra vez, aquele menir que lhe esmagava o esterno sem quase o deixar respirar.

A hipótese de não lho dizer de todo nunca se colocara, pois ele era daqueles que cultivava a verdadea qualquer custo, que a mimava e alimentava como a uma filha ou a uma planta, gerada que fora no seio dos pergaminhos familiares. Assapado no totalitarismo do conceito de verdade como sendo algo de absoluto e válido por si só, escapou-lhe a evidência: de que a dita também pode correr subterrânea, como um lençol freático que segue manso e não deve vir ao de cima nem, muito menos, jorrar tipo geiser, sob pena de inundação diluviana dos sentimentos e de todos os seus anexos.

Não intuiu, ele, que alturas há em que a verdade, para o ser, basta ser pressentida, sem precisão de se exibir nua num striptease de perna aberta à volta de um varão, em exposição pornográfica e a arfar sobre os clientes os seus sonhos distantes; e provou assim desconhecer o poder de devastação nuclear de uma verdadeque se queria calada - um poder, destruidor não apenas dela própria, mas também de todas as outras verdades que a vida deles transportava em compartimentos interiores e malas de viagem e que, num segundo, se desfizeram em poeira atómica.

Ela tentou dizer-lho: a cada vez que desatava a discorrer sobre o peso do papel higiénico no meio ambiente ela estava a avisá-lo, a enviar-lhe sinais para que guardasse as palavras bem embrulhadinhas dentro dele, para que as dobrasse em quatro, depois em oito e por fim em dezasseis, para que fizesse com elas um quantos queres, um avião, um barquinho ou uma bola de cuspo, e as atirasse ao ar ou lhes puxasse fogo, que ela não as queria. Só que, quanto mais ela fugia, mais ele corria atrás dela, desalmado, a desfraldar-lhe a história daquela noite em estandarte, um vozeirão épico de valquíria a querer sair-lhe do peito e ela sempre a tapar os ouvidos, lailaraiquenãoquerosaber.

Que burro fora, ele. Sempre com a boca cheia de verdade, para aqui e para acolá: sobrevalorização nítida. Falta de senso. De sentido das proporções. De instinto de sobrevivência amoroso. Não teriam sido as fugas dela mais do que suficientes para o redimir? Não poderia ele ter visto, na mímica perfeita do silêncio dela (um silêncio atulhado de futilidades) o perdão e a fuga em frente, o beijo do esquecimento, a passagem secreta para os dias seguintes? Poderia, mas não o fez.
Um dia, enquanto ela se secava à pressa de um duche tardio, ele cercou-a e disparou sem dó nem piedade, lembras-te daquela noite em que eu... E ela, apanhada de surpresa entre a água que lhe escorria e a procura dos chinelos de quarto, não foi a tempo de sacar assunto e viu-se obrigada a engolir a verdade com todos os acompanhamentos, batata frita, arroz e salada, uma anorética forçada ao alimento. Uma verdade de merda, diga-se: estúpida, como tudo o que é fortuito, e inútil, como tudo o que nada significa de facto.
Pôs-lhe as malas à porta e nunca mais se viram.


Epílogo.

Ele sentiu-se culpado, mas nunca percebeu que o crime maior que praticara não fora o da traição mas sim o da soberba, ao arrogar-se uma superioridade moral sobre ela (que não detinha): ele contara-lhe a verdade daquela noite vazia, não porque achasse que ela merecia sabê-la, mas por uma questão de princípio; não porque a respeitasse acima de todas as coisas, mas porque não se podia permitir perder o respeito que sentia por si próprio.Ela, por sua vez, não desarvorou em fúrias de mulher enganada nem em gritarias de culebrón (coisa que nem lhe faria o género); passou, apenas, a olhá-lo como o que ele realmente fora: um idiota perdulário, um pobre esbanjador, que deitara fora tanto por tão pouco.

No fundo, limitou-se a achar que ele (não fora aquela rectidão transpirada por todos os seus poros, sempre tão honestos e verticais), poderia mas era ter enfiado a puta da verdade em vários outros sítios, que não entre eles os dois.
Basicamente.

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por Vieira do Mar, em 18.07.06
de noite na cama *




Os dois de carranca aviada, costas com costas (coisa aí de meio centímetro), numa simetria perfeita se vista de cima, das alturas. De olhos pousados no escuro, simulavam a respiração regular de um sono há muito despejado nos sonhos: o fito não era convencer o outro de que dormiam de facto, mas sim de que o outro percebesse que o desprezo era tal e a vontade de estar ali tão pouca, que antes fingir que dormiam do que correrem o risco de serem incomodados. Era pela necessidade de lho fazer ver, a ela, que o pé dele balouçava fora da cama, propagando o movimento em ondas pelo colchão e que a mão dela se abria e fechava, agarrando o escuro da noite e obrigando-o a sentir a deslocação de ar. Prolongada que fosse por muito mais tempo a ignorância do outro e um deles desataria certamente a assobiar...

Uma melga zumbiu algures e logo as mãos dele se encontraram num plás! inesperado a mílimetros do ouvido dela, assustando-a de morte. Mas ela arrumou sob a língua seca o filhodaputa!que quase lhe fugiu e manteve-se imóvel sob os lençóis, ele esperando em vão o derrame de ofensas, como quem espera a passagem de autocarro em dia de greve.

Depois ela fungou, fingindo alergia ou constipação súbita e a seguir esticou a perna, acometida de uma falsa caîmbra, simulando o abafo de uma dor que não sentia, esperando assim gerar nele uns fiapos de simpatia ou um derrapanço na compaixão. Nada.
Ele afastou-se alguns milímetros ainda mais do calor dela, resolvendo mostrar-lhe que afinal estava acordado, ela com aquele maldito pigarreio e o esticar de perna, que maçada, e acendeu a luz. Manteve um ar misterioso enquanto via as horas, como que a dizer-lhe que era muito importante saber as horas porque talvez aguardasse com ânsia o momento de qualquer coisa que ela não sabia porque não lhe respeitava, apagou a luz com ar satisfeito e acondicionou novamente o corpo na posição fetal, aproximando-se das costas dela com o cuidado e a precisão de um capitão de navio numa aproximação àamurada do cais, mantendo os anteriores cinco milímetros, numa acostagem perfeita.

E ela, inquieta com o cheiro a derrota que invadia o quarto, marreca de saber que perdia sempre, nestas medições de força bruta por entre os lençóis, resolveu esforçar-se um bocadinho mais. Abriu a luz, ala para a casa-de-banho e vai de porta fechada na cara dele. Esperou meia dúzia de segundos (poucos, se não ele perderia o interesse e adormeceria de boca aberta, a ressonar para o tecto os cansaços do dia) e cama com ela, para onde se atirou com estardalhaço suficiente para lhe assegurar a vigília por mais um bocadinho. Pretendeu calcular mal a distância e aterrou com uma perna em cima da anca dele, que simulou um enfado-quase-nojo, descartando-a de modo urgente enquanto ela se afastava, como que queimada pela pele dele. Acabaram a pantomima apartados mais meio centímetro, que agora no total já perfazia um.

Segundos depois, ele levantou-se e ela pensou, pronto, vai para a sala e eu fico aqui acordada, e agora?, plano B!, plano B!, colou o ouvido ao colchão e sentiu os pés dele descalços a reverberarem-lhe no peito, queres ver que vai mesmo? não acredito, por favor não vás!, ele saiu do quarto, fechando-lhe a porta atrás de si e ela a engolir um grito, obrigas-me a levantar, sabes que detesto portas fechadas, levantou-se para abrir a porta e deu de caras com ele, fui buscar um copo de água, justificou-se, ah! para a próxima não me feches a porta, sabes que eu não gosto, desculpa não me lembrei, pumba!, mais um ponto de avanço, sacana, e deitou-se fingindo saciedade, que não preciso de mais nada para um soninho descansado.
Derrotada, ela ajeitou a almofada num agoraéqueé, a raiva desvastando-lhe a flor da pele, acelerando-lhe as sinapses e o bater do coração, pum pum pum, queresverqueogajoaindaouve e, rendida à evidência do desprezo dele, fechou os olhos, decidida a dormir a sério. Mas logo lhe sentiu o pé, tremelicando-lhe no tornozelo e suspirou, lávamosnósoutravez.

E então, perante a súbita consciência da infantilidade bacoca e do ridículo daquela valsa de vontades no escuro, daquela tola semiótica de colchão, atacou-lhes o riso. Mas um ataque daqueles sérios, repescados das entranhas e fisgados para fora com a força e a perícia de um pescador de espadarte em dia sim. Atravessados pelo pânico, engoliam o ar às golfadas, para dentro! para dentro!, mas era tarde de mais: a cama desatou num estremecimento incontrolado e ele era cabeceira, colchão, ombros, gargantas, pescoços e mãos, num terramoto de riso que rebentou as escalas, de mercali, de richter e o diabo a sete. Escorreram-lhes lágrimas cara abaixo, cuspiram-se gargalhadas na cara um do outro e, noestertor da alegria que se lhes vazava por todos os poros como bexigas furadas, misturaram-se-lhes pernas, bocas, pés, bacias, externos, cabelos, lágrimas e fluidos vários.

Escusado será dizer que adormeceram abraçados e acordaram tarde que se fartaram, dia seguinte.


* de uma canção de Caetano Veloso

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por Vieira do Mar, em 18.07.06
a arte da fuga



Conseguida a custo a entrega temporária dos miúdos, encontram-se a meio caminho entre a casa dos pais dela e o escritório dele. Acorrem sem pressa àbilheteira e aceitam sem reclamar as sobras que a mulher sisuda do lado de lá do vidro lhes impõe, afinal, é segunda-feira e estão atrasados, não têm por que se queixar. Dão por eles nos lugares mais escondidos da sala mais recôndita de um mega-complexo recém inaugurado, enfronhados no pesadelo neurótico-estático de um realizador nórdico premiado.

Mergulham os dois as mãos no balde das pipocas e recordam aquela vez em que aterraram também de chofre nos delírios onanistas de um outro realizador, este francês (só podia!), o que lhes vale um ataque de riso, logo seguido de um chiuuu! sibilado do outro canto da sala. Parecia que, a cada vez que tentavam fugir, por uma hora que fosse, da esquizofrenia do seu próprio quotidiano, o acaso trocava-lhes as voltas e contemplava-os com a esquizofrenia dos outros, esparramada num ecrã gigante! Não é que achassem aquilo mau (aliás, quem eram eles para criticar o chamado cinema de autor?, eles, os soberanos incontestados das matinés walt disney presents...), mas fazia-lhes espécie, aquela ausência de ruído das emoções dos personagens, que os obrigava a deitarem-se a adivinhar.

Às tantas, algures entre um divórcio e uma tentativa de suicídio filmados em tons sépia, ele sussurra-lhe, o que me apetecia mesmo, mesmo, era um big mac. Ela sacode uma pipoca colada no canto da boca e, sem se dar ao trabalho de fingir-se enjoada com a vulgaridade da sugestão, atira-lhe um sonoro e sintético bora!. Enquanto, no ecrã, a neve cai e os personagens dialogam sob a forma de monólogos sucessivos, eles dão-se as mãos pegajosas de açúcar queimado e furam sem cerimónia a circunspecta fila, deixando atrás de si um lastro de desculpas não aceites. No corredor e a caminho da porta, por entre fiapos de escuro e luz, ela arrisca, queres namorar comigo?; ele alinha no jogo, está bem, mas só hoje.

Acabam empoleirados em dois bancos de fórmica, rodeados de putas e chulos, a lamber ketchup dos dedos e a recordar episódios do Seinfeld.

Nessa noite, não pedem três happy meal com cheese natura, dois para rapaz, um para rapariga. Mas arrecadam o brinde.

...

por Vieira do Mar, em 18.07.06
os vermes dos dias iguais



Combinaram encontrar-se no cartório, que ficava exactamente por cima da conservatória onde, um mês antes, um velho de voz enrodilhada e articulações rangentes lhes decretara o divórcio e ela vomitara o almoço aos pés da funcionária que assessorava o acto. Desta vez, porém, segurara o estômago com um jejum prolongado e apresentava-se calma, decente, vá, de sapatinho de salto e saia travada, a emanar respeitabilidade suficiente para aquietar qualquer desconfiança negocial da contraparte. Ele chegou-se-lhe de gravata às riscas, fato completo e corte de cabelo à barbeiro de bairro, as patilhas demasiado compridas e acertadas à navalha, reparou ela, a transpirar honestidade, confiança e força de trabalho por todos os poros, na sua pose habitual de vencedor nato.

Encontraram-se à entrada do prédio, ambos atrasados (o mesmíssimo atraso, ao minuto, não: ao segundo!), já os promitentes compradores fungavam e o notário arfava de calor e impaciência, desculpem, desculpem, aqui estão os nossos bê-is (nossos, não, o meu e o teu, pensou ela, num daqueles preciosismos desnecessários de alma xupa-limões, arrepiada e amarga que só visto), estado civil? casada, ai desculpe, divorciada, é que ainda não me habituei.

Ele sentou-se ao lado dela, afastando-se uns precautos dez centímetros, espaço contentor, não era o que querias?, o squiiiiiich das pontas das pernas da cadeira, a riscarem o soalho sob o peso dele e a arrepiarem a pele dela, e o sobrolho franzido do velho, que ajustou os óculos e começou a ler a escritura. No entretanto, ela a reconhecer-lhe o perfume e ele a topar-lhe o tom ruivo das madeixas e a extrapolar os motivos, porque raio já não estás loura?, ambos demasiado próximos, demasiado tristes, demasiado frágeis, afasta-te, vá!, não era isso que tu querias, distância? então chega-te para lá, olha para outro lado, não me inspecciones como se tivesse piolhos, primeiro outorgante; e tu não me cheires dessa maneira que mais pareces uma cadela de focinho alçado, a farejar-me, segunda outorgante. Mantiveram o diálogo telepático durante toda a leitura, como dois miúdos de escola, colegas de carteira que passassem a aula a empurrar-se e a acotovelar-se, a ver quem cai primeiro, não fui eu senhora professora, foi ele, ele é que começou tudo!

Às tantas, ela compôs um ar urgente e fingiu ler mensagens no telemóvel, vês? estou muito ocupada desde que nos separámos, repara bem!, enquanto lhe media as patilhas pelo canto do olho e lhe espreitava a nuca imóvel, imóvel inscrito na matriz coiso e tal, a cabeça dele virada para a rua, sito na rua não sei das quantas, lote xis, rés do chão, e ele a acreditar na farsa , no chão, sim! conseguiste, estou no chão, arrasado, buldorizado, espalmadinho de tanta saudade e ciúme. Quando chegou a altura de assinar, passou-lhe para a mão a caneta que ela lhe oferecera três natais antes e trocaram cheques, sorrisos e apertos de mão com os novos donos do apartamento que fora deles, prometendo-lhes que, atéao fim da semana, o limpariam dos destroços do naufrágio do seu casamento.

Foi ele quem pagou os emolumentos devidos e requisitou duas cópias certificadas da escritura, a puta da escritura (uma para ela). Desceram juntos até à rua, concentrados no tum tum tum síncrono dos passos matraqueados nos degraus. Despediram-se de vista baixa, fingindo ignorar o pestanejo aflito do olhar do outro, SOS!, três curtos, três longos, três curtos, SOS!, e viraram-se as costas num rompante de sevilhanas, rua acima um, rua abaixo o outro.

Chegado à esquina, ele tirou o bê-i do bolso para o guardar na carteira, mas saíram-lhe dois: dois documentos de identificação, agarradinhos ao outro, a filiação dele colada na fotografia dela. Respirou de alívio, finalmente, tinham chegado os meios de salvamento, os marítimos, os terrestres, os aéreos!, pelo que poderia dar início à operação de resgate. Virou-se num pé, como um bailarino num soustenu desequilibrado e desencabrestou rua acima, a chamar por ela, exibindo o documento como se fosse um colete insuflável e ela se estivesse a afogar, já a ouvir violinos e a ver ao longe uma luz que a chamasse.

Quase esbarrou nela, que descia, lebre-de-corrida, com a caneta dos três natais anteriores na mão, a gritar por socorro e preparada para lhe disparar um verilaite no estômago.

E ali, no meio da rua e a meio caminho um do outro, respirando-se boca-a-boca, pensaram poder de facto resgatar aquele amor naufragado, sem saberem que um Amor, quando se descostura e rompe, não há desfibrilhação nem manobra cardíaca que o valha, e que o deles há muito que estava morto e decomposto, a servir de alimento aos vermes dos dias iguais que, à espreita nas esquinas dos prédios que lhes lançavam sombra por sobre as línguas molhadas, aguardavam o momento de se banquetearem de novo, num festim vampiresco.

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