o rei do karaokeÉ herdeiro de uma das maiores fortunas da cidade, mas o seu sonho é ser
o rei do karaoke. Com uma voz desafinada e a figura de um buldogue choroso, rabiscada à pressa por um deus sem paciência, todo ele cresce em sentimento quando canta, de olhos fechados,
New York New York, iluminado por um talento que não tem. Agarrado ao microfone que gasta pilhas LR, sente-se um verdadeiro Sinatra, um Roberto Carlos ou, melhor ainda, um Tony Carreira, coliseu ao rubro,
ninguém arreda pé que queremos mais. Tomado de uma inexplicável paixão pelo gorgolejo romântico sob as luzes infecciosas da ribalta, indagou nas melhores lojas da especialidade (e que ficam na margem sul, essa terra de bandas de garagem e de gente que não tem vergonha de gostar de música), onde gastou vários milhares de euros numa caixa profissional,
do mais evoluído que pode haver e muitos furos acima das que se vêem naqueles bares de ingleses à beira-rio. Foi à
net e comprou cedês, caixas inteiras deles,
cd1, cd2 ... cd345;
Madonna, Beatles, Rute Marlene, Quim Barreiros, Spice Girls, Elton John, Rui Veloso, Emanuel, música 06, 25, 34. Comprou uma
pickup japonesa de vidros fumados, ao estilo
velocidade furiosa, só para transportar toda a parafernália sonora, incluindo duas colunas de 400
watts, microfones e dezenas de pilhas LR, que numa noite vão-se às dúzias (
desliguem os micros quando acabarem de cantar, por favor!). Quando não assiste os amigos nas festas, fecha-se na garagem da vivenda de três andares, que reflecte nos ajulejos a falta de gosto e o excesso de liquidez, e arrisca trinados e escalas impossíveis, pondo o
Tejo e o
Mondego a ganir em fuga para o andar de cima. E tudo porque, dentro do construtor civil dos
quisestes e
fizestezio, mora uma alma sensível à música, a
toda a música, que sonha com o aconchego do estrelato internacional por entre as distribuições de lucros do ano anterior. O ar compenetrado e a disponibilidade fácil com que atende os pedidos (
por ordem de chegada), escritos com risinhos de nervoseira em
posts its próprios que traz consigo para o efeito (nada é deixado ao acaso), contrasta com a displicente chanata havaiana, o calção-corsário que mais parece do filho, a t-shirt rasgada à
hard rock e o boné na cabeça ao contrário, à brasileiro do samba e do pagode. O vocabulário reduzido de quem está mais habituado a separar tipos de tijolos e de pavimentos do que sílabas e orações, não lhe impede a eloquência melancólica, quando encarna um
Domenico Modugno e se lamenta que não é digno dela. Por detrás da postura grosseira enfeitada a pólos D&G e
rolexes de ouro, esconde-se no fundo um espírito inconformado que descobriu um dia que o dinheiro serve para mais alguma coisa do que para gerar mais dinheiro, designadamente, para comprar-lhe o gozo de contornar as barreiras da ignorância e da falta de mundo.